Alface
“Foi por essa época que os lobos invadiram a cidadezinha do cónego, sabendo aproveitar a sua ausência e culminando um cerco de meses.”
De um elemento sintático estendem-se braços brincalhões para uma palavra distante, envolvendo muito do que está no meio. À palavra escancara-se a possibilidade, sempre e a cada segundo, de poder existir num contexto diferente. As palavras não cabem em si. Pesadelos inundam os sonhos. Tudo parece possível. Incertezas nasceram, porque o impossível é meramente possível. Objectos intrigam, demónios pequenos que não tinham sido envolvidos aparecem do nada e têm projectos.
Mas a escrita é sagrada, porque ela sabe unir o utópico e o distópico-
João Alfacinha da Silva, ou Alface, 1949-2007, nasceu em Montemor-o-Novo, no Alentejo, a terra que ficou a sua preferida embora tivesse vivido mais de metade da vida em Lisboa, onde estudou, trabalhou, se casou e viria a morrer.
Trabalhou como autor, argumentista, jornalista, publicitário, e era um apaixonado cozinheiro e sinuoso jogador de golfe na sala da casa dos avós, em Montemor.
Escreveu a quatro mãos com Manuel da Silva Ramos a Trilogia Tuga, obra que iria abalar a semântica Portuguesa para sempre, e forneceu guiões para a Radio Comercial ao longo de 20 anos. (O programa Marcas deste século será aqui sublinhado.)
Casou-se com a pintora Gina Frazão, com quem teve duas filhas, Margarida e Carlota.
Nasceram netos.
Em 1992 decidiu tentar a vida como freelancer e na mesma altura começou a passar mais tempo no Alentejo, na casa que entretanto tinha herdado dos avós. Escreveu o seu quarto romance Cá vai Lisboa e cinco livros de contos. Fechava-se em casa para escrever, jogando golfe na sala para esticar as pernas.
Alface gostava do distinto, do que era raro e do humor alentejano, não o associado à piada barata que normalmente lhe é atribuída, “mas o do divertimento com a vida, as suas ribaltas e misérias. O da pequena história rocambolesca […]”.1
Os seus netos, quando visitam a casa em Montemor-o-Novo, também jogam golfe.
1 https://omarginalameno.blogs.sapo.pt/cuidado-com-o-rapaz-135515